Geografia & Poesia



Geografia & Poesia



Milton Santos, combatente intelectual



Tive a distinção e o prazer de privar da amizade do professor Milton Santos. Não vou descrever aqui suas qualidades como pensador original, criador de uma nova Geografia centrada no espaço e território usado. Conheci pouco o professor de Geografia, mas desfrutei em várias ocasiões do convívio deste grande combatente da cidadania plena. Defendia a causa dos excluídos com veemência, embora visse a militância com reservas, por uma postura sartreana, de independência total, que todo intelectual deve ter. Mas alertava: "O fato de ser negro e a exclusão correspondente acabam por me conduzir a uma condição de permanente vigília" (Revista Adusp 19, junho de 1999).

E foi nessa vigília constante que nos reunimos, lá nos meados dos anos 90, na busca de uma saída para o processo que a USP movia contra Fernando Conceição, também baiano, como o professor Milton, aluno do Mestrado da ECA, preso quando pichava paredes da USP clamando por vagas para os negros. Bem humorado, sempre com um sorriso franco, o professor Milton assumia a defesa do gesto militante do aluno. Para sua tristeza, apesar de seus esforços e de outros professores que se somaram à luta, o aluno acabou sendo condenado a pagar uma indenização à USP para cobrir os gastos de reparação da pintura das paredes. Seu amor à docência e à pesquisa se diferenciava em cada gesto, em cada iniciativa que tomava com os seus alunos e orientandos. Pouco antes de receber o título de Professor-Emérito, que lhe foi atribuído pela Congregação da Faculdade de Filosofia da USP, conversamos por um bom momento. Ele estava feliz pela homenagem, porém contrariado pelo que chamava de excludência compulsória, após ter completado os 70 anos de idade. Lembro-me de que isto o marcou indelevelmente, pois queria continuar na docência plena, porque achava que ainda tinha muita disposição para continuar o seu trabalho. E, nessa circunstância, a aposentadoria compulsória não deveria ser aplicada ao professor.

Em 1998, um mês depois da eclosão da guerra civil em Guiné-Bissau, fomos procurados por vários alunos bolsistas daquele país, que, de repente, viram-se sem recursos para continuar seus estudos. Novamente recorremos à força de Milton Santos e organizamos um ato expressivo, no auditório da Geografia. Sua intervenção foi decisiva para que a CCint ouvisse os bolsistas com dificuldades, proporcionando-lhes alguma ajuda, enquanto perdurou o conflito.

Outro grande momento do professor militante que eu conheci, sem nunca ter assumido a militância (talvez o niilismo sartreano o explicasse), foi quando lhe telefonei para compor a comissão dos professores notáveis, para superarmos o impasse a que havia chegado a greve dos docentes, funcionários e alunos da USP, da Unesp e da Unicamp, em junho do ano passado. Embora sentindo o peso da doença que lhe acometia, disse que atenderia um pedido meu. Procurei deixá-lo à vontade, mas acho que, no fundo, o jovem jornalista que ele havia sido na Bahia, às vezes, falava mais alto do que o geógrafo. Pediu-me que lhe munisse de dados sobre o movimento. Conversamos durante quase duas horas, em sua casa e, à noite, apesar do frio, lá estava ele lutando para que a greve fosse vitoriosa. Do professor e amigo, que resistia à doença com um humor peculiar, só ouvi uma reclamação: a indignação que ele sentia por ter que comprovar a cada novo ano, junto à Diretoria de Pessoal da USP, que ainda estava vivo, exigência que ela faz a todo aposentado.

No domingo, dia 24, com pesar, perdíamos o geógrafo criador, o amigo combatente e o grande defensor dos excluídos.

Por Jair Borin (ECA)



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